domingo, 31 de março de 2013

Crepúsculo à Beira Mar (óleo)


O mar dourado cuspindo peixes
O sol nas cristas e a tarrafa
A areia bruma e peneirada de maré
O coqueiro sozinho e breve
                                    Um horizonte
                                    Depois da ponte
                                    Quase distante
                                    Se não fosse ali
A água cálida de movimento
Os pássaros rutilando o roxo céu
Entre nuvens derradeiras
Que sempre a tarde já vai cair
O som dos silêncios entre as ondas
O hiato de haver gravitação
O sangue pulsando oceânico
E as sereias embebedadas
As proas no Cabo do Futuro
Os pedregulhos submersos e lodos
A velha carcaça do náufrago galeão
Uma brisa nua
Um ocaso esquecido
A maresia com aroma de carne crua
E um terço do que ainda se vê
A praia está escurecendo
O sol descendo sob a barra de fogo
As casas acendendo as vidas
E a noite que vai chegar só
                                    O betume
                                    As jangadas
                                    As cordas
                                    As velas
                                    O nó.


sábado, 30 de março de 2013

Idade: O Nome do Tempo


A mesma idade que nos arrebata,
Que vai deixando as coisas para trás,
Vai consumindo correntes e algemas,
Quando então as portas se abrem
E nem notamos que já é de manhã.
A mesma ilusão que nos compeliu,
Mesmo que agora arrefecida e muda,
Mesmo que há tanto tempo guardada,
Servirá de indumentária à festa que virá.
Assim como também nos fará companhia,
Pois dia chegará em que estaremos prontos.
Não como estivemos antes de tudo ruir,
Estaremos vazios de dor, de passado, de nós.
Para que tudo o que nos faltou nos esqueça
E as fantasias que restaram comecem a sorrir.
E os dias sejam apenas caminhos serenos
Por onde nossas mais despojadas alegrias.
Somos agora como que um veio de vida
E as nossas lembranças não mais atemorizam,
Os nossos pretextos perderam a razão.
A mesma idade que nos experimenta,
Que nos vai ensinando de erro em erro,
Mostrando-nos o quanto que tudo passou,
É o nome do tempo perdido no âmago ser
Que em cada um de nós se deixou resgatar.



sexta-feira, 29 de março de 2013

Distraído Coração


Tenho o coração debruçado
Na janela que dá para a solidão
Meu peito roça as plantas do jardim
As plantas que cresceram demais
Meu olhar por trás da água das casas
Vê muito além de seus quintais
Tenho o coração agarrado
A um feixe de lembranças sem cor
Este peso que me mantém acordado
Para eu não ser tragado pela dor
Mas é apenas um enredo muito antigo
Um medo que insiste em seu castigo
Nem sequer uma lágrima merece
Tenho o coração todo em prece
Sem mesmo ao menos balbuciar
Tenho este não que nunca me esquece
E que só me aparece assim, sem avisar.


quinta-feira, 28 de março de 2013

Um Que Resiste

É estranho parecer que faz sentido
A solidão com suas horas mastigadas
Tudo são agoras e outras noites passadas
De onde me perco sem nem bem querer voltar
Quase me dissolvo enquanto apenas respiro
De tanto que o silêncio que se instaurou me leva
Antes mesmo que amanheça e o graal dia
Quem sabe se não me esqueci foi de acordar
É o aferro que a mão do pensamento gira
Numa grande roda de agonia medieval
É distintamente nobre essa dura obstinação
Que estoica e insiste em minha caixa craniana
Contorcendo os nervos azulados e frágeis
Como uma sede de depois de depois de amanhã
É intenso o surrealismo que apregoa em vão
Nas pinceladas gestuais desta hemoptise
Tanto que começo a gargalhar – de dor
Antes de desfalecer inútil ao meu algoz
Os gritos no corredor de pedra cessaram
O rangido das cordas velhas se calou
Só o arfar tirano de cansaço e interrogação
Mas contem lá que na verdade estou vivo
E que muito ainda há para se saber.


quarta-feira, 27 de março de 2013

Contemplativa


Eu passo uma noite inteira olhando o céu
Fico tão ausente que pareço evaporar
Num instante o pensamento vaga ao léu
E no outro eu simplesmente paro de pensar
E olhem que isto me basta
A despeito desta minha vida gasta
Que só faz é querer me acabrunhar
Eu fico extasiado com as flores do mato
Que sabem o momento exato
De esperar a chuva cair para desabotoar
Nem mesmo elas têm olor
São tal e qual uma espécie de flor
Que assim como alguns tipos de amor
Só foram feitos pra gente olhar
E o mar, que dizer do intrigante mar
Com seu semblante de pura calmaria
Que só dura até que o vento
Com seu movimento e sua rebeldia
Resolva se rebelar
Isto sem falar nos animais e plantas
De cujas variedades são tantas
Que é quase impossível de se contar
Tudo é tão majestoso e perfeito
Que até o mais escabroso defeito
A seu modo e a seu jeito
Foi feito para nos conquistar
Por isso não me digam
Que eu preciso de algo mais
Do que estes meus sentidos
E de toda a ocorrente natureza
Para eu poder apreciar
Porque se eu quiser ter paz
Mais do que haveres proibidos
Prefiro olhar esta beleza
E os prazeres consentidos
Que somente ela pode me dar.



terça-feira, 26 de março de 2013

Missiva


Solidão nua
Rua de dor vazia
O amor mandou avisar
– não adianta esperar –
Que esta noite ele não viria.


segunda-feira, 25 de março de 2013

Pronuncia

Hay un certo peligro 
Tu nombre 
Que sé dice al nada del viento 
Es más cercano el milagro
Milagro del pensamiento
Deflagra en sentido 
Sentido de ser temprano
Tu nombre, el sonido 
De todo lo que es ser humano.




domingo, 24 de março de 2013

Eu Poético


Se a poesia some
Fico meio ausente
Meio sem nome
Quando ela se cala
Minha boca se fecha
É meu peito que fala
Quando a poesia quer
Eu estou
Se ela não vier
Eu me vou
A poesia estanca
Minha alma Espanca
A poesia se dana
O meu ser Quintana
Quando a poesia voa
Meu olhar Pessoa
Se a poesia chora
Não chorou à toa
Quando vai embora
É porque se perdeu
Se ficar doente
Quem sente sou eu
Quando fala de dor
Essa dor é minha
E se falar de amor
Não vai amar sozinha. 


sábado, 23 de março de 2013

Ironicamente

Solidão não há
Maior que a minha solidão,
Pois estou só comigo
E aqui não há mais ninguém.
Não consigo imaginar alguém
Mais sozinho do que eu.
Escuto apenas meu coração
E o som que a ironia faz:
Este é o silêncio da solidão,
Silêncio de agonia e de paz
Em que a minha paz se perdeu.


sexta-feira, 22 de março de 2013

Colérica


Morde o rabo
A raiva
De quem fez
Morder o rabo
Uma vez
Pra dar cabo
E outra vez
E mais raiva
Que a raiva
Alimenta
E afugenta
O medo
Que é raiva
Entristecida
A saída
O segredo
É sentir raiva
Que raiva
Imediata
É raiva
Translata
Proibida
Para menor
De idade
A raiva mor
De verdade
É infante
Semblante
Imaturo
Do querer
Duro osso
De roer
Raiva dura
De esquecer.



quinta-feira, 21 de março de 2013

Anafórica


Não há rito
Quando o amor não é mito
Não há dor
Quando o medo não é rancor
Não há tédio
Se a saudade tem remédio
Não há dilema
Se mudar não for problema
Não há sentença
Se o melhor for diferença
Não há trauma
Se o golpe não foi na alma
Não há jeito
Quando tem que ser perfeito.


quarta-feira, 20 de março de 2013

Cantilena da Hora Sem Nome


Mais sopro que bem o clarão
No vão das ruas esquecidas.
As vidas vagando nas docas,
As bocas e os olhos sem cor.
Um triste lupanar sobrevivo,
A eterna ausência de amor.
E a cidade adversa, calada...
Já não há mais nada a dizer.
Tudo é tão madrugada
Dentro das alcovas e fora,
Que até perece ser agora
Que até nem vai amanhecer.
Poderia congelar o tempo
O estranho deste movimento,
O desvelo se quedar de ilusão.
Acontece que já é quase dia,
Apesar da candora calmaria,
Embora só fantasia, solidão.


terça-feira, 19 de março de 2013

Quem Dera a Alegria


                      Quem dera a alegria
A verdadeira alegria
Aquela de olhos vendados
E peito cavado à beira mar
Quiçá o esquecimento de si
O vento nas velas lufadas
E o horizonte como fronteira
A felicidade é um segundo
Daquilo que se sabia mundo
A um passo da risca do medo
A um braço do amor resoluto
                       Quem dera a alegria
Não as gaitadas irrequietas
Os gestuais de mera euforia
Quem dera o silêncio efusivo
Trancado no íntimo rompante
Esperando outro beijo vindouro
Quem dera as fantasias reais
Que se vive na terra do nunca
Das quais se tem vaga notícia
Pela boca entreaberta da noite
Os sonhos são livres e cautos
Portas fendas de luz decisiva
No éter de cada figura
E no sim do que se pode conter
                       Quem dera a alegria
Este mágico logradouro
Esta casa dantes de tudo
Que a felicidade é quase segredo
A amêndoa por dentro da noz
O vestígio pelo qual vale a pena
A ínfima dose de ser plenamente
                        Quem dera a alegria
Tatear-se às vistas o passado
E achar-se no melhor do presente.



segunda-feira, 18 de março de 2013

Homo Virtus


Hipnótica tela de cristais
Lágrimas sem líquido
Sem os devidos sais
Homérica odisseia
De parecer gente
Feérica inútil plateia
De poder indiferente
                  Aos sentimentos
                   Aos fragmentos
Das linhas e entrelinhas
A vaidade nunca adormece
Quando a cidade esquece
De apagar suas janelas
Aquelas pessoas lá
São as únicas que há
Ruas e becos sombrios
Aqueles dizeres híbridos          
: vazios quereres vazios
Que no tablado de luz
Tudo o que mente seduz
Tudo é vera postagem
Tudo é mera miragem
O parto das sombras 
                               Da caverna
Na parede do quarto 
Da idade moderna
A rede de seres antissociais
A teia dos tímidos boçais
Na veia o ácido ribonucleico
Finge que é puro o sangue
Que tinge as frias paixões
Plêiades no céu das ilusões
Isolamento coletivo crônico
Momento decisivo atônito
Da mais estranha espécie
Dentre todas as civilizações.



domingo, 17 de março de 2013

A Fé


Qual espécie de sentimento que punge
Que canta pelos pórticos dentro do peito
Qual ladainha repetida a guisa de alento
O medo se originou nesta dor tremenda
Que deu origem ao sim da vã esperança
E na direção da qual os olhos vendados
O corte das espadas infames e cruzes  
As dissensões e as contendas ignóbeis
Qual som que tem teu nome engastado
Rebatido os lastros soltos neste oceano
Esta tão epífise percepção de que ainda
Mesmo derrocada a última das sílabas
Assaz repetida ao sabor das travessias
Se suas a fronte de senhores e cativos
Trazes um sentido a mais e que ocultas
Prenda tola de que tanto nos tem privado
No tanto que também deliberas e estiola
De sentido e de certeza quase figurativa
Pepitas ao longe este fulgor tão singular
Mas tudo isto em o silêncio da miragem
Cabalas por entre os séculos e séculos
E mesmo o depois que o tempo não tem
Cala ante o corso das tuas carruagens
De qual destreza perjuras para existir
Que os sempres deixam de ser eternos
E universos expandem à tua conotação
Há que haver nisto tudo a simplicidade
Ou tua pronúncia não delataria este mal
Mesmo um sopro sem as persignações
Uma titubeada frase rouca e moribunda
Ou um átimo que se evapora no pensar
E és no infinitivo do instante conjugado
Num espaço entre duas ou mais vidas
Como algo de que já se pudesse supor
Se se visse frente ao espelho constato
Como se bastasse rogar-te e receber
Ou burilar as iniciais na coluna que és
Que tua existência está em seres nada.





sábado, 16 de março de 2013

Vagamente


Sonhei que amava.
Acordei sozinho,
Mas era nítido:
Decerto era amor,
Pois me amparava
E era caminho.
E, estranhamente,
Fazia sentido.
Havia o silêncio
Que só a intimidade
Assim, condoída. 
Havia a certeza
De toda uma vida,
De muito além
De qualquer beleza. 
Sonhei que era paz,
Pois me refazia
E intrigava também
Quando nada pedia.
Lembro-me pouco,
Apenas o vulto,
A vaga fisionomia 
– 
Mais sensação breve
Que imagem clara.
Decerto era sonho,
Pois me entregava
E parecia amor.
E aquilo era leve,
Era um toque suave
De mãos reconhecidas,
De histórias vividas
E de águas profundas.
De olhares antigos
Como que nos redimindo
De nossos elos perdidos
De onde fomos sumindo
Até restar só a mim...
Mas como era amar
Certamente era amor,
Que era um sonho
Que só sabia sonhar:
Não podia acordar,
Nem podia ter fim.




sexta-feira, 15 de março de 2013

Os Caracteres


O papel de bombom é vermelho
Como o batom na boca do espelho
O cinema é claro de escurecer
O amor é amaro e não deixa ver
O fim é o não e o sim, solidão
A parte que me toca
É a arte que te provoca
O enleio está para a poesia
A fantasia está para o recreio
Quem veio de antes
Conhece nosso depois
Pois bastam alguns instantes
Para poder falar de nós dois.


quinta-feira, 14 de março de 2013

Lis


Rir de dor
Para amar tanto amor
Cingir linhas inocentes
Que escondiam unhas, dentes
Janela por detrás dos sentidos
Multiplicados, tácitos, comovidos
Ela, que de um tempo grave
Sorvia fragrâncias, brisas, domingos
Que numa sentença apregoava
E numa silaba se escondia
Como se fosse canção
O medo contrafeito da fera
Que era e nem tanto feria –
Que no peito não lhe cabia
O selvagem coração.



In Modestium, para Clarice Lispector.

quarta-feira, 13 de março de 2013

Quem Refém de Quem


O garoto
Quase morto
Cheira a cola
Que cola a sola
Do sapato que pisa
A cara do cara lisa
Mascara a carranca 
De gola branca
E paletó 
Que cheira o pó
Que pulveriza
E dá o nó
No pescoço
Na garganta
Da gravata
De grã-fino
De araque
É só o osso
É crack
Esse menino
Com a boca
Na lata oca
Mal levanta
Ele é ele
Ou ele é ela
?
E a favela 
Não se espanta
Mais com nada
A pedra
A ponte
O papelão
A fonte cristalizada
A lida desliada
A avenida
O calçadão 
A rua e o medo
Por onde passam
A vida crua
O morro e a morte
brinquedo da sorte
Dentro do rabecão.